A luta pela redução da jornada de trabalho
Análise crítica do filme “Os Companheiros”, de Mario Monicelli(1950)
Os companheiros, em italiano “I
compagni”, é uma brilhante comédia à italiana de Mario Monicelli, sobre a dificuldade
de operários em negociar menos horas de trabalho em uma fábrica de tecelagem na
cidade de Turim, Itália no início do séc. XX. Alguns operários se revoltaram
pelo excesso de horas trabalhadas e queriam trabalhar 13 horas diárias. Pelo
entendimento de submissão do trabalhador ao setor produtivo imperioso à época,
eles deveriam trabalhar 14 horas. A história é ambientada em Turim, no começo
do século XX, na primeira experiência real de greve do setor operário da
história da Itália. A sequência inicial do filme de Monicelli já nos mostra que
a mensagem será dura, de sofrimento e que penderá para o lado mais fraco da
relação, aquele dos operários. Monicelli costumava dizer em entrevista, ser “Os
companheiros” seu filme mais interessante, mais fiel à realidade italiana e o
seu preferido do ponto de vista histórico.
Monicelli é dotado de
uma inteligência que o coloca à frente do seu tempo, e ele a dispõe a serviço
da sétima arte durante praticamente toda sua existência humana. Sua mãe era uma
camponesa e seu pai, Tommaso Monicelli intelectual, escritor, ambos de Ostiglia,
província de Mantua. À época da união do casal, Tommaso era um socialista
revolucionário e um atuante sindicalista, colaborador assíduo da Avanguardia socialista de Milão e
Monicelli parece ter herdado a veia revolucionária do pai (CHIOZZOTTO, 2019, p.
180).
O que se vê nos primeiros fotogramas,
é uma Turim magicamente trazida intacta do início do século XX pela feliz sorte
da produção encontrar uma fábrica daquela época ainda em funcionamento, onde os
teares - muitos deles ainda com máquinas da mesma época - funcionando como
relógios suíços. A arquitetura típica dessas fábricas de tecelagem lembra aquelas
que se instalaram no Brasil em época semelhante, e que hoje servem como espaços
públicos, de lazer e de cultura e/ou espaços comerciais como shopping centers. A música que
complementa a imagem desse início pungente, se faz pelo ruído dos teares em
contraponto com a famosa canção Marcia
della Cinghia sobre uma imensa massa de trabalhadores (anciãos, mulheres e
crianças), movendo-se como loucos com roupas esfarrapadas e expressão de
esfomeadas nos rostos sujos de graxa. Esses trabalhadores do começo do século
XX se parecem mais com uma espécie de mendigos zumbis, que a seres humanos,
ditos trabalhadores. Sobretudo se compararmos a imagem deles àquela imagética
do Homem que experimenta a ascese pelo trabalho construída pelo cristianismo
luterano, oriunda da modificação de consciência relativa ao trabalho
fortificada pelo movimento das reformas.
Com
o protestantismo de Lutero o trabalho se converteu como fonte de riqueza,
dignidade e função centralizadora na vida humana, sendo entendido como uma
forma de servir a Deus, e de afastar-se do pecado (SILVA; TORRES, 2010). A
ideologia protestante inseriu no trabalho um caráter de caminho para o divino,
estimulando o labor e a acumulação, considerando o ócio, a ausência de
trabalho, a desocupação, atos indignos e não sujeitos às benesses divinas (WEBBER,
1996). Esse
panorama de horror e miséria de quem trabalha 14 horas por dia, explorado em
sua mais-valia com uma paga medíocre ganha uma especial dignidade com a sublime
fotografia de Giuseppe Rotunno. A catarse que o filme traz à superfície pelo
sofrimento daqueles operários expressa muito bem a frieza dantesca de como são
tratados os seres humanos nas fábricas pelos seus superiores e patrões no
começo do século XX. Rotunno intercala diversas tonalidades de branco e preto
que se alternam ao representar os diferentes ambientes vividos, seja por
operários, seja por aqueles burgueses.
O desenvolvimento da força
produtiva do trabalho, no seio da produção capitalista tem por finalidade
encurtar a parte da jornada de trabalho durante a qual o trabalhador tem de
trabalhar para si mesmo, justamente para prolongar a outra parte da jornada
durante a qual pode trabalhar gratuitamente para o capitalista (MARX 1983, p.
255).
“Os Companheiros” é também uma prova da
sublimação do estilo de comédia à italiana de Mario Monicelli, que em essência
conta de maneira furtiva a tentativa de homens que intentam algo maior do que
eles próprios e fracassam na tentativa. “No mundo só uns
poucos vencem, e a mim sempre interessaram os perdedores” (Mario Monicelli), (PRUDENZI
RESEGOTTI, 2006, p. 36). O realismo de “Os Companheiros”, mostra
operários através daquilo que realmente são, operários, com sinceridade e
honestidade daqueles que pelo simples desejo de poder estar mais tempo com a
família decidem tocar a sirene da fábrica uma hora antes.
Para Marx, a condição
primordial do desenvolvimento humano e da emancipação do ser humano é a redução
da jornada de trabalho (MARX, 1989). Com a Revolução Industrial (séculos XVIII
e XIX), o tempo livre perde precioso espaço na vida dos trabalhadores por conta
da extensão progressiva da jornada de trabalho. Esta passagem soldou de vez a
perda da liberdade pessoal. Isto porque com o advento da máquina e a
necessidade de sincronismo com ela, altera-se o ritmo da vida do homem que
passa a ser controlado não mais biologicamente, mas sim pelo tempo da máquina
(THOMPSON, 2005). Na primeira metade do filme, após a fracassada
decisão de tocar a sirene uma hora antes, de unir-se em reunião fora da fábrica
para discutir qual o próximo passo do movimento operário, eles são punidos
severamente, são obrigados a trabalhar mais ainda, tudo para envergonhá-los e desencorajar
qualquer outra atitude subversiva da ordem burguesa. Para Meneghetti e
Sampaio (2016) a disciplina é elemento fundamental no modo de produção
capitalista e tal foi bem observado por Marx que comparou a disciplina de
quartel com o código fabril. Para Meneghetti e Sampaio (2016, p. 139).
Na
fábrica dominada pela maquinaria, onde o patrão é o legislador absoluto, existe
um código disciplinar que estabelece o que o operário deve fazer e o que ele
não pode fazer. Em caso de inobservância, punições como multas e descontos de
salário. Assim como o quartel está dividido entre soldados e suboficiais, a
fábrica tem sua divisão entre trabalhadores manuais e capatazes.
Para
Foucault, “o soldado tornou-se algo que se fabrica” (FOUCAULT, 1987, p.162).
Neste sentido Raoul, Pautasso, Martinetti, respectivamente: Renato Salvatoiri,
Folco Lulli e Bernard Blier deparam e notam estar em uma organização, cujos tramites
e normas acabam por moldar-lhes o comportamento. Pode-se encontrar sinais de
que a empresa modela, treina e cria obediência no empregado. Para Foucault “O Homem-máquina de La Mettrie é ao mesmo
tempo uma redução materialista da alma, uma teoria geral do adestramento, no
centro dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o
corpo manipulável” (FOUCAULT, 1987, p. 163). Há uma cena bastante
significativa, que nos dá uma visão nítida do sentimento de sujeição e de
diminuição da subjetividade de um grupo desses trabalhadores. Os mais
insatisfeitos e corajosos para enfrentar o patrão na tentativa de conseguir
mais tempo livre em suas vidas decidem enfrentar as forças superiores da
fábrica. Caminhando na ponta dos pés, muito resignados e respeitosos, agindo
como se estivessem pisando em solo sagrado, pecadores no paraíso, eles adentram
na área da fábrica destinada aos escritórios de administração, de projetos e afins
e consequentemente restrita somente aos homens mais próximos do patrão, mas
proibida a eles. Estar próximo ao proprietário é como estar próximo a Deus. Portanto,
as dificuldades em se reduzir a jornada refletem o desinteresse dos
empregadores detentores dos meios de produção, posto que o tempo a menos no
trabalho é tempo a menos para disciplinar o corpo e a mente do trabalhador, do
não poder exercer sobre ele uma coerção, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica
produtiva — movimentos, gestos atitude, rapidez: influenciando o corpo ativo.
Para Foucault, “os métodos que permitem o controle minucioso das operações do
corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma
relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as disciplinas” (FOUCAULT, 1987, p.164) e
estas disciplinas visam tornar o corpo obediente e útil. E percebe-se que no
sistema capitalista de produção é exatamente isso que ocorre.
Após esse episódio envolvendo o
pequeno grupo de empregados dialogando sem sucesso com a diretoria da fábrica, entra
na história o intelectual professor Sinigaglia, interpretado magistralmente por
Marcelo Mastroianni. O tempo livre e tempo de trabalho são categorias
construídas por processos de natureza social, histórica, econômica e política
que aqueles operários desconhecem como matéria de direito. Nesta seara,
importante destacar rapidamente os conceitos de tempo de trabalho, tempo livre
e tempo disponível e para tanto recorremos ao referenciado por Marx nos Grundrisse. E a partir da leitura desta
obra, Faria e Ramos (2014) ratificam que na acepção marxista o tempo de
trabalho deixou de ser a medida de todas as riquezas, a qual passou a ser o
tempo disponível e neste cenário o tempo livre passa a ser aquele que se encontra
para além do tempo disponível. Em outras palavras, tempo livre é aquele que o
trabalhador tem para si e que não está à disposição do capital (FARIA; RAMOS,
2014). E é este o conceito de tempo livre que, diferentemente de lazer (que
envolve diversão) e de ócio, (que envolver o fazer nada, conceito pejorativo). O
professor genovês em sua apaixonada retórica comunista, com aparências de um
homem abandonado em seus pensamentos e que pouco se ocupa da aparência lhes
ensina sobre a “luta de classes”. Sinigaglia convence-os de que mesmo se o
sucesso não lhes ocorra, eles estão dando um importante passo para o futuro no sentido
de escolherem o que fazer com o tempo, e que mesmo sem serem detentores dos
meios de produção, a fábrica lhes pertence.
Foucault
também cita o controle do horário como uma velha herança e instrumento de
controle da atividade: “O rigor do tempo industrial guardou durante muito tempo
uma postura religiosa; no século XVII, o regulamento das grandes manufaturas
precisava os exercícios que deviam escandir o trabalho” (FOUCAULT, 1987, p.
175). Percebe-se que a jornada de trabalho, que deveria engrandecer o ser
humano, aprisiona sua subjetividade, não deixando espaço para seu ser como pessoa. Mas, por outro lado “procura-se também garantir a qualidade
do tempo empregado: controle ininterrupto, pressão dos fiscais, anulação de
tudo o que possa perturbar e distrair; trata-se de constituir um tempo
integralmente útil” (FOUCAULT, 1987,
p. 176).
Sinigaglia lhes dá esperança,
estimulo, continuidade de propósito para prosseguirem com a reivindicação, e
ele lhes dá muito mais ao iluminar-lhes as consciências sobre o valor que
possuem se unidos como uma classe, a classe dos trabalhadores de tecelões. Isso
fica claro quando a resiliência e a união permitem que consigam sobreviver
tempo suficiente em greve a fim de interferir nos negócios do patrão, sobretudo
pela fala imperiosa de Sinigaglia: - Tomem-na! A fábrica é de vocês! Voltem,
mas para tomá-la! Fala essa que os anima e fortalece. Marcello Mastroianni no
papel de um professor agitador nos dá uma ideia muito nítida do homem que ao
pensar pelo povo é perseguido, mesmo quando no seu inconsciente acredita poder
arquitetar ideais libertadores e revolucionários na mente daqueles operários analfabetos.
Monicelli nos mostra essa fiel determinação na cena da polícia, lacaia dos
donos das fábricas de Turim, procurando-o pela noite nas ruas frias da cidade
industrial italiana para prendê-lo como pede o dono da fábrica ao identificar o
incentivador das atitudes subversivas de seus até então dóceis operários
ignorantes de seus direitos.
Na fuga, Sinigaglia encontra seu
esconderijo em uma cafeteria e ali reencontra uma prostituta Niobe (Annie
Girardot) que no dia anterior derrubou lágrimas ao ouvi-lo discursar para a
elite e seus bajuladores em um restaurante sofisticado da cidade. Niobe e Sinigaglia
têm à disposição muito tempo livre, isso lhes dá condições de refletir o estado
das coisas, sobre os descaminhos de uma sociedade capitalista de aparências, de
construir uma impressão muito precisa do ocupadíssimo operário analfabeto dos
primórdios da revolução industrial italiana vivendo na sombra da escuridão de
sua ignorância.
Monicelli através de uma narrativa tragicômica, típica da
comédia à italiana a qual é um dos precursores, para alguns estudiosos do
cinema italiano, seu próprio inventor, trouxe à luz do nosso tempo questões de
um passado remoto da sociedade industrial que encontra eco em nosso tempo. Os debates em
torno da jornada de trabalho a partir do século XX passaram a questioná-la
tendo em vista o extraordinário salto tecnológico que a humanidade presenciou. Entretanto, a tecnologia e o conhecimento não foram
capazes de eximir o sofrimento e o esforço que o trabalho excessivo provoca,
pelo contrário, empunharam uma premência de maior produtividade no
trabalho, tanto do trabalho material como do imaterial,
e para assomar, assistiu-se nas últimas décadas a degradação de direitos
sociais conquistados aliado a imposição de práticas gerenciais de comando e
desmando, que promoveram a precarização social da categoria que vive,
sobretudo, da sua própria força de trabalho.
A
lógica reinante entre os estudiosos do trabalho e do tempo livre é a de que o
incremento da tecnologia em prol da redução da jornada de trabalho poderia
redundar em aumento do tempo livre. Esta perspectiva foi explorada por Keynes
(1997) em 1930, que vislumbrou que de lá a 100 anos, a humanidade poderia, por
conta dos avanços do progresso técnico e das imensas potencialidades das forças
produtivas no capitalismo, diminuir o tempo dedicado ao trabalho e aumentar o seu
tempo livre. Para Russel (2002) o tempo livre, se não tivesse sido usurpado
pela classe capitalista, seria ocupado de maneira a oferecer ao trabalhador o
lazer e o estudo dentro da proposta de uma nova organização social (em uma
proposta de uma jornada de trabalho de quatro horas) elevando o indivíduo a uma
categoria superior, o que poderia promover o desenvolvimento humano,
permitindo-o ocupar-se apenas de sua subsistência. Mas estaria o ser humano
preparado (já que vem sendo moldado pelo fascínio à mercadoria) para viver com
o pouco necessário? Percebemos em nossa sociedade que, não obstante, o avanço
técnico e material, o regime de acumulação de riquezas materiais não se fez
acompanhar de um apontamento da autonomia e das potencialidades humanas (FRANCALANZA;
CORAZZA, 2014), pelo contrário, se voltou para a alienação do indivíduo perante
o trabalho e a degradação de sua subjetividade. E é com o arquétipo da comédia à
italiana que Monicelli introduz sua narrativa em estilo satírico de picardia,
ao analisar os temas aqui abordados. Estilo esse experimentado com sucesso em
filmes anteriores, desde épicos históricos, àqueles de situações de atualidade
no dia a dia, onde Monicelli retrata em chave cômica um acúmulo de desgraças
que leva o povo italiano, sobretudo o camponês analfabeto, a ser explorado em
sua mão de obra pelo patrão, ao mesmo tempo em que é abandonado à própria sorte
pelo Estado.
Luiz Chiozzotto
Texto originalmente publicado em http://www.telacritica.org/telacritica15_04.pdf
Referências
CHIOZZOTTO,
Luiz. Filmes que projetaram a identidade
italiana no cinema: o melhor do cinema italiano ontem e hoje. Sorocaba,
2019.
FARIA,
José Henrique de; RAMOS, Cinthia Leticia. Tempo dedicado ao trabalho e tempo
livre: os processos sócio-históricos de construção do tempo de trabalho. Revista
de Administração Mackenzie. São Paulo, v. 15, n. 4, p. 47, 2014.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1987.
FRANCALANZA,
Paulo Sérgio; CORAZZA, Rosana Icassatti.
Direito à Preguiça? Sobre as Impossibilidades Econômicas para Nossos Netos.
Anais do XIX Encontro Nacional de Economia
Política. Foz do Iguaçu, 2014.
KEYNES,
John Maynard. Economic Possibilities for our Grandchildren. Frontier
issues in economic thought, v. 2, p. 343-344, 1997.
MARX,
Karl. O Capital. Crítica da
Economia Política. Vol. I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
______.
O capital. Livro 3, Vol.6. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil,1989.
______.
Manuscritos econômico-filosóficos.
São Paulo: Martin Claret, 2002.
______.
Grundrisse. São Paulo: Boitempo
Editorial, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2011.
MENEGHETTI, Gustavo; SAMPAIO, Simone
Sobral. A disciplina como elemento
constitutivo do modo de produção capitalista. Revista Katálysis, v. 19, n.
1, p. 135-142, 2016.
Prudenzi,
Angela e Resegotti, Elisa. Cinema
político italiano anos 60 e 70. São Paulo: Cosac Naify.
RUSSELL, Bertrand. O Elogio ao Ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.
SILVA,
Victor Leandro da; TORRES, Iraildes Caldas. A conquista do trabalho e o direito
ao ócio. Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos. Amazonas, v. 10, n. 2,
p. p. 139-151, 2010.
THOMPSON,
Edward Palmer. Tempo,
disciplina de trabalho e capitalismo industrial: costumes em comum –
estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:
Pioneira, 1996.