Sandra Oliveira Mayer Barros
Luiz Chiozzotto
Resumo
Mesmo com os avanços
científicos e tecnológicos que a humanidade presenciou no último século, o
ideário de que o tempo livre ganharia espaço na vida do trabalhador, não se
realizou. É cediço que a história recente do homem que vive a sociedade do
capitalismo manipulatório burguês tem sido dominada pela presença da
intensificação, precarização e exploração da classe-que-vive-do-trabalho.
Percebe-se que a classe que detém os meios de produção se esquiva de todo
diálogo que vise promover a redução da jornada de trabalho. Percebe-se que esta
redução da jornada de trabalho pode trazer em muitos casos benefícios conjuntos
para os sujeitos da relação trabalhista, mas mesmo assim, a classe patronal não
cedeu aos anseios da classe trabalhadora. O objetivo deste artigo é examinar de forma pormenorizada o espaço que
ocupa a jornada de trabalho,através de uma leitura de base analítica foucaultiana das relações de controle, vigilância e
poder disciplinar utilizando fundamentalmente a obra de Foucault Vigiar e Punir. Busca-se investigar se a negativa
em reduzir a jornada de trabalho é resultado de um receio de perda da dominação
do empregador sobre o trabalhador. Será feita a princípio uma investigação
teórica acerca da luta histórica pela redução da jornada de trabalho, como
resultado de um embate de poderes, seus avanços, retrocessos e resistências e
num segundo momento, a investigação se concentrará em identificar na
resistência de cariz burguês os elementos presentes na obra Vigiar e Punir. A investigação
permite considerar que na jornada de trabalho ocorre o exercício do poder, da
dominação, da vigilância e do controle do empregador-patrão sobre o empregado
de forma que todo tempo a menos no trabalho é tempo a menos de dominação. A
redução da jornada de trabalho propicia a quebra das amarras do sistema
histórico de dominação capitalista. Por fim, pode-se identificara dominação, o
controle, a vigilância e a disciplina como elementos estratégicos ao
funcionamento da estrutura social do sistema capitalista e obstrutores da
histórica demanda pela redução da jornada de trabalho.
Palavras-chave: Foucault. Jornada de trabalho.
1
Introdução
Mesmo com os avanços científicos e
tecnológicos que a humanidade presenciou no último século, o ideário de que o
tempo livre ganharia espaço na vida do trabalhador não se realizou. É cediço
que a história recente do homem que vive a sociedade do capitalismo
manipulatório burguês tem sido dominada pela presença da intensificação,
precarização e exploração da classe-que-vive-do-trabalho.
Percebe-se que a classe que detém os
meios de produção se esquiva de todo diálogo que vise promover a redução da
jornada de trabalho. Percebe-se que esta redução da jornada de trabalho pode
trazer em muitos casos benefícios conjuntos para os sujeitos da relação
trabalhista, mas mesmo assim, a classe patronal não cedeu aos anseios da classe
trabalhadora.
O objetivo deste artigo é examinar de forma
pormenorizada o espaço que ocupa a jornada de trabalho, através de uma leitura
de base analítica foucaultiana das
relações de controle, vigilância e poder disciplinar utilizando
fundamentalmente a obra de Michel Foucault Vigiar
e Punir.
Busca-se investigar se a negativa em reduzir a jornada
de trabalho é resultado de um receio de perda da dominação do empregador sobre
o trabalhador. Será feita a princípio uma investigação teórica acerca da luta
histórica pela redução da jornada de trabalho, como resultado de um embate de
poderes, seus avanços, retrocessos e resistências e num segundo momento, a
investigação se concentrará em identificar na resistência de cariz burguês os
elementos presentes na obra Vigiar e
Punir.
2 A jornada de trabalho na
vida humana
A
sociedade moderna e sua dinâmica central como uma “sociedade do trabalho” foi
apoiada pelas teorias clássicas da Sociologia burguesa e da Sociologia
marxista, em que a categoria trabalho firmou-se como o fato sociológico
fundamental (OFFE, 1989). Esta centralidade também é tratada por Lucáks (2012),
que posiciona a categoria trabalho de forma central em sua Ontologia tendo em vista que o trabalho é um
fenômeno originário, é a protoforma do ser social. Para Lucáks (2012), é o
trabalho que propicia o salto ontológico, que converge o indivíduo de uma forma
pré-humana para uma forma social.
O
mesmo fenômeno originário da passagem do ser orgânico para o ser social
(LUCÁKS, 2012) é tratado por Marx (1983) que diferencia o homem em relação aos
demais animais e à natureza.
Contudo, Lafargue
(1999), genro de Marx, afirmou que o reino da liberdade requer
a supressão do assalariamento e do trabalho. Suas
provocações são cheias de vida, explicitando o âmago da questão atemporal
(1999, p. 04):
Uma
estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a
civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e
sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor
ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho, levado até ao esgotamento das
forças vitais do indivíduo e da sua progenitora. Em vez de reagir contra esta
aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas sacrossantificaram o
trabalho.
Os
debates em torno da jornada de trabalho aumentaram quando se passou a discutir
sobre o extraordinário salto tecnológico que a humanidade presenciou. A lógica
reinante entre os estudiosos do trabalho e do tempo livre é a de que o
incremento da tecnologia em prol da redução da jornada de trabalho poderia
redundar em aumento do tempo livre. Esta perspectiva foi explorada por Keynes
(1997) em 1930, que vislumbrou que de lá a 100 anos, a humanidade poderia, por
conta dos avanços do progresso técnico e das imensas potencialidades das forças
produtivas no capitalismo, diminuir sua jornada de trabalho e aumentar seu
tempo livre, permitindo a conscientização individual e plena do ser.
Para Russel (2002) na lógica capitalista de
produção, uma minoria dominadora de origem burguesa explora uma maioria de
trabalhadores alienando-os para retirar-lhes o tempo livre apoderando este para
si, valendo-se a seu tempo da tecnologia disponível e propulsora de tempo livre
e a consequente possibilidade de ócio aos trabalhadores. O tempo livre, se não
tivesse sido usurpado pela classe capitalista, seria ocupado de maneira a
oferecer ao trabalhador o lazer e o estudo dentro da proposta de uma nova
organização social (em uma proposta de uma jornada de trabalho de quatro horas)
elevando o indivíduo a uma categoria superior, o que poderia promover o
desenvolvimento humano, permitindo-o ocupar-se apenas de sua subsistência
(RUSSEL, 2002).
3
A construção da jornada de trabalho contemporânea
Com o
protestantismo de Lutero o trabalho se converteu como fonte de riqueza,
dignidade e função centralizadora na vida humana, sendo entendido como uma
forma de servir a Deus, e de afastar-se do pecado, da mesma forma que a noção
de predestinação, idealizada por Calvino, intensificou este concepção cristã de
trabalho (SILVA; TORRES, 2010). A ideologia protestante, em que pese ter
questionado as indulgências da Igreja Católica, inseriu no trabalho um caráter
de caminho para o divino, estimulando o labor e a acumulação, considerando o
ócio, a ausência de trabalho, a desocupação, atos indignos e não sujeitos às
benesses divinas (WEBBER, 1996).
O
trabalho, que se incorpora ao pensamento social, ganha ares de dever e a ideia do dever, historicamente falando,
foi um meio usado pelos detentores do poder para convencer os trabalhadores a
dedicarem suas vidas ao benefício deles, mais do que aos interesses dos
próprios trabalhadores” (RUSSEL, 2002, p. 27).
Mills
(1976) afirma que foi na teleologia de Marx que o trabalho adquiriu um sentido
precípuo e vital para a vida humana posto que na sua teleologia, essa concepção
de trabalho passa a ser contestada, sendo não apenas forma que aquisição de
riqueza, mas também, a forma de exploração de trabalho, instrumento de mais
valia, alienação e dominação. Assim em sua obra Marx expôs o caráter duplo do
trabalho: positivo como fator constituinte do ser social humano e, negativo,
quando torna o indivíduo, espoliado dos meios de produção, uma mercadoria
alienada.
Na
aurora do capitalismo comercial (séculos XVI ao XVIII) e passagens para o
capitalismo industrial (século XVIII), e da manufatura para a grande
indústria, momento de gênese da Revolução Industrial (séculos XVIII e XIX),
ocorre uma extensão progressiva da jornada
de trabalho. Esta passagem soldou de vez a perda da liberdade pessoal –
não havia mais possibilidade de escolha para o operário de quando trabalhar e quando
não trabalhar. Percebe-se aqui que a grande indústria aumentou a quantidade de
assalariados (incluindo mulheres e crianças) e o controle do tempo do trabalho.
Neste
período a jornada de trabalho se dava pelo controle da máquina e a necessidade de sincronismo com ela
altera-se o ritmo da vida do homem que passa a ser controlado não mais
biologicamente, mas sim, pelo tempo da máquina (THOMPSON, 2005) que era de
propriedade da burguesia.Assim percebe-se que a burguesia passa a ditar e
organizar o tempo dos que não detém os meios de produção. Ela assim o faz para
legitimar o modo de produção que busca impor.
O
período Pós-Revolução Industrial foi marcado por uma profunda referência ao
trabalho, tanto na estruturação social como na produção do sujeito moderno
(BRAMÃO, 2000). Até meados do século XX o modo de produção e acumulação
capitalista que se estabeleceu foi o fordismo/taylorismo, que trazia um “pacto”
entre a burguesia e o movimento operário, em troca da renúncia do “sonho
socialista” e da adaptação ao novo processo produtivo (ALVES, 2000; MARCELINO,
2002). Neste período a jornada de trabalho chegou a limites sobre-humanos e a
linha de montagem das fábricas alienou o trabalhador, tornando ele uma
mercadoria.
A
falência do regime de acumulação fordista começou a ser sentida entre o fim dos
anos 60 e começo dos anos 70 e este processo de mudança de paradigmas denunciou
as condições de trabalho alienantes dos trabalhadores sob o regime fordista
gerando uma crítica social à centralidade do trabalho na vida das pessoas
(BIHR, 1998; MARCELINO, 2002). A crise estrutural do capitalismo (conceito
lapidado por Mészáros) iniciada na década de 1970 teria repercussões que
atingiram, entre outros campos da vida social e psicológica dos trabalhadores.
Após
a crise estrutural do capital surge o movimento de acumulação flexível e sua
mundialização do capital e da lógica financeira.Uma das principais
consequências desse movimento foi a desregulamentação e flexibilização do
processo produtivo, dos mercados e da força de trabalho, orientada por um forte
ataque do Estado e do capital conta a classe trabalhadora (ANTUNES, 2009).Para
Mészáros (2009), a reestruturação do capital exigiu uma intensificação da
exploração da mão de obra e aumento do tempo dedicado ao trabalho (acumulação flexível[1]).
Para
os patrões, o que se busca é o aprisionamento da psique do trabalhador de modo
a fazê-lo dedicar-se ao máximo para o trabalho, com disponibilidade total,
degradando o tempo de não-trabalho(GAULEJAC, 2007).Com o paradigma Toyotista ocorreu
uma intensificação do trabalho nunca vista antes (DAL ROSSO, 2008), e junto com
as transformações tecnológicas, mais produtividade foi obtida, contudo, o tempo
dedicado ao trabalho não diminuiu.
Na
empresa moderna, a ordem é manter o indivíduo em um estado de disponibilidade
permanente (dentro e fora da organização). A jornada de trabalho de 5 dias de
trabalho por 2 dias de descanso(em que pese a variação desta jornada em muitos
países e das flexibilizações regionais e setoriais) não basta para o domínio
organizacional, estreitando a linha divisória ente o tempo de trabalho e o
tempo livre. Trata-se da idealização do manager hipermoderno (GAULEJAC, 2007).
4
A jornada de trabalho e suas transcendências
Para
De Masi (2000), a fantástica sociedade pós-industrial de Taylor e Ford ao invés
de aproveitarem as inovações tecnológicas para produzir a mesma quantidade de
bens em menor tempo (e reduzirem a jornada de trabalho) favoreceram a produção
de mais bens no mesmo tempo, alimentando assim, além do necessário progresso,
também uma espiral de consumo, que em algum momento da história encontraria a saturação do mercado[2].
Para
a oferta de produtos sem demanda, as empresas preferiram demitir trabalhadores
em vez de reduzir a carga horária de trabalho, alimentando assim a exploração e
o espectro do desemprego – o trabalhador com medo de perder o emprego, passa a
trabalhar mais e se doar mais ainda ao trabalho (DE MASI, 2000) o que acaba por
impelir grande parte dos trabalhadores a aceitar uma pequena parte da riqueza
socialmente produzida (KEYNES, 1997).
Para
De Masi (2000), vivemos a sociedade do crescimento, mas numa estrutura social
que foi construída em torno do trabalho. Contudo, falta trabalho na sociedade
do trabalho (ARENDT, 1981). Para a falta de trabalho, os teóricos se debruçam e
a redução da jornada de trabalho é solução recorrente. Keynes (1997) demonstrou
diversos elementos que são atemporais. Para o problema do falta de emprego ele
faz uma proposta de trabalho de turnos de três horas e semanas de 15 horas,
possibilitando que o pouco de trabalho que existe seja bem dividido (vejamos
que o texto foi escrito em 1930, logo após a crise de 1929) e com esta
organização do trabalho, Keynes conclui que “três horas de serviço, de fato,
são mais do que suficientes para satisfazer o velho Adão que existe em casa um
de nós”.Com este formato de organização poderia eliminar-se o fantasma do
desemprego e reduzir a jornada de trabalho.
Contudo,
para Gorz (2007), a grande indústria prega às massas que “o trabalho corre o
risco de faltar - ao invés de falarem a verdade, qual seja, que não há
necessidade de tanto tempo dedicado ao trabalho”.
Na
seara da redução do tempo de trabalho, nota-se que os países ricos optam
pelo desemprego ao invés da redução da jornada de trabalho, tanto para manter
seus lucros, como para manter os trabalhadores que restam disciplinados (DE
MASI, 2000).
Percebe-se
na trajetória histórica, uma redução gradativa da jornada de trabalho
desde a década de 30, que levaram muitos teóricos a preconizar a Sociedade do
Lazer[3].
De sessenta para trinta e até vinte horas semanais (algumas categorias
profissionais, principalmente aquelas que desenvolvem atividades que podem
comprometer a saúde física ou psíquica ganharam jornadas diferenciadas) muitos
acreditaram que a redução continuaria. Contudo, esta redução parou nas 8 horas
diárias, cinco dias por semana de trabalho e dois (no máximo) de descanso. Não
ouve mais conquistas a partir de então.
A
teoria marxista deve ser conclamada aqui. O tempo excedente dedicado ao trabalho
imposto pelos detentores dos meios de produção é cada vez maior em função do
grau de intensidade que se trabalha, tanto quanto como pelo seu incremento.
Este tempo excedente, se não estivéssemos no raiar capitalista, poderia ter
sido revertido em tempo livre para o trabalhador. Contudo, esta sobra de tempo
passa a ser usada como mais-valia, para o enriquecimento e acumulação dos
capitalistas (FARIA; RAMOS, 2014).
Ou, como afirma Marx, nesta passagem (1983, Vol. I, p. 255):
O
desenvolvimento da força produtiva do trabalho, no seio da produção capitalista
tem por finalidade encurtar a parte da jornada de trabalho
durante a qual o
trabalhador tem de
trabalhar para si
mesmo, justamente para
prolongar a outra
parte da jornada durante a qual pode trabalhar
gratuitamente para o capitalista.
Ainda para
Marx, a condição primordial do desenvolvimento humano e da emancipação do ser
humano é a redução da jornada de trabalho (MARX, 1989).
5 Vigiando e Punindo: a
jornada de trabalho como locus e spatium de controle e dominação e como
instituição disciplinar do modo de produção capitalista
Até
este momento exploramos as dificuldades em se estabelecer uma redução na
jornada de trabalho ao longo das últimas décadas e para tanto nos detivemos
sobre uma visão histórica dos movimentos dos modos de produção e produção de mercadorias.
A partir deste momento nos deteremos sobre a jornada de trabalho em si, posta
como é na sociedade capitalista atual.
Partimos
do ponto de vista de que o trabalhador dentro de uma organização é peça
fundamental para a obtenção de lucros para o empregador e por conta disso, a
redução da jornada de trabalho encontra uma enorme barreira patronal. Mas
entendemos que não se trata somente disso. Para explicar nossa hipótese faremos
uma tentativa de traçar um paralelo entre a literatura descrita em Vigiar e Punir do filósofo francês Michel Foucault
(1926 – 1984) e as dificuldades em se obter uma redução na jornada de trabalho. Em
nossa análise buscamos fazer uma analogia da jornada de trabalho como locus do poder disciplinar e
espaço de dominação e controle impostos pelos detentores dos meios de produção
sob a égide do sistema capitalista de produção.
Pede-se escusas
desde já pelo uso de citações diretas e literais da obra de Foucault, mas as
palavras do autor são tão cabíveis que não haveria outra maneira de melhor
expor senão literalmente.
Em sua obra Vigiar e Punir (publicada em 1975) Michel Foucault trata da
dominação imposta aos corpos nos processos disciplinares, trazendo reflexões bastante incisivas afirmando
que as fábricas se assemelham às prisões. Isto porque em ambas as instituições
encontra-se um poder denominado disciplinar. Este poder se traduz em uma
individualidade (celular, orgânica, genética e combinatória) e
corpos disciplinados (dóceis e úteis). Este disciplinamento faz parte do modo de
produção capitalista (FOUCAULT, 1987, p. 244):
Por isso, o desenvolvimento da
economia capitalista fez apelo ao poder disciplinar: na verdade os dois
processos, acumulação de homens e acumulação de capital, não podem ser
separados; não teria sido possível resolver o problema da acumulação de homens
sem o crescimento de um aparelho de produção capaz ao mesmo tempo de mantê-los e
de utilizá-los; inversamente, as técnicas que tornam útil a multiplicidade
cumulativa de homens aceleram o movimento de acumulação de capital. Em um nível
menos geral, as mutações tecnológicas do aparelho de produção, a divisão do
trabalho, e a elaboração das maneiras de proceder disciplinares mantiveram um
conjunto de relações muito próximas. Cada uma das duas tornou possível a outra,
e necessária: cada uma das duas serviu de modelo para a outra.
Para
Meneghettie Sampaio (2016) a disciplina é elemento fundamental no modo de
produção capitalista e tal foi bem observado por Marx que comparou a disciplina
de quartel com o código fabril (2016). Para Meneghetti e Sampaio (2016, p. 139).
Na fábrica dominada pela
maquinaria, onde o patrão é o legislador absoluto, existe um
código disciplinar que estabelece o que o operário deve fazer e o que ele não
pode fazer. Em caso de inobservância, punições como multas e descontos de
salário. Assim como o quartel está dividido entre soldados e suboficiais, a
fábrica tem sua divisão entre trabalhadores manuais e capatazes.
Para
Foucault, “o soldado tornou-se algo que se fabrica” (FOUCAULT, 1987, p.162).
Neste sentido pode-se notar que ao ser contratado para uma organização muitas
vezes o empregado vem com uma mentalidade e ao adentrar nos tramites e normas
do emprego, acaba sendo moldado pela empresa. Pode-se encontrar facilmente (em
especial no Toyotismo) sinais de que a empresa modela, treina, cria obediência
no empregado. Para Foucault “O Homem-máquina de La Mettrie é ao mesmo tempo uma
redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo
analisável o corpo manipulável” (FOUCAULT,
1987, p. 163).
Seguindo
nosso paralelo, as dificuldades em se reduzir a jornada refletem o contragosto
dos empregadores detentores dos meios de produção, posto que o tempo a menos no
trabalho é tempo a menos de disciplinar o corpo e a mente do trabalhador, de
não poder exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo
da mecânica — movimentos, gestos atitude, rapidez: influenciando o corpo ativo.
Para
Foucault, “os métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam
a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de
docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as disciplinas” (FOUCAULT, 1987,
p.164) e estas disciplinas visam tornar o corpo obediente e útil. E percebe-se
que no sistema capitalista de produção é exatamente isso que ocorre.
Em Vigiar e Punir, as instituições disciplinares como colégios, escolas primárias, hospitais, organizações militares fabricam corpos submissos e exércitos, corpos "doceis", que se entrelaçam com a particularidade dos regulamentos, com o olhar esquadrinhado das inspeções, que passam a exercer o controle das pequenas partes da vida e do corpo.
Durante a jornada de
trabalho, este espaço de dominação ganha esta esfera e atualmente, com o homework, a empresa passa a
controlar não só o tempo que o empregado trabalha dentro da organização, mas
também o trabalho fora da organização. O discurso moderno do homework mascara novas formas de controle que
envolvem principalmente os jovens que se encantam com a modernidade cibernética
proporcionada pelos trabalhos em rede.
A
fábrica de Foucault parece claramente um convento, uma
fortaleza, uma cidade fechada. O controle do tempo e do espaço é
uma estratégia do patrão para concentram as forças
de produção, e tirar delas o máximo de
vantagens e aniquilar seus inconvenientes
(roubos, interrupção do trabalho, agitações e “cabalas”);
além de proteger os materiais e ferramentas e de dominar as forças de trabalho (FOUCAULT,
1987).
Outra
estratégia de controle prevista em Vigiar
e Punir e plenamente
aplicável à jornada de trabalho moderna é o denominado quadriculamento. Para
Foucault o quadriculamento coloca cada “indivíduo no seu lugar; e em cada
lugar, um indivíduo” (FOUCAULT,
1987, p. 169). O quadriculamento
é nada mais que a distribuição por setores milimetricamente construídos de
forma a evitar amizades e dispersões: “distribuições por grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou
fugidias” (FOUCAULT, 1987,
p.169).
O
ambiente de trabalho então necessita de uma organização que (FOUCAULT, 1987, p.
169):
(...) anule os efeitos das repartições indecisas,
o desaparecimento descontrolado
dos indivíduos, sua circulação
difusa, sua coagulação
inutilizável e perigosa;
tática de anti deserção, de
anti vadiagem, de anti aglomeração. Importa estabelecer as presenças e as
ausências, saber onde
e como encontrar
os indivíduos, instaurar
as comunicações úteis, interromper
as outras, poder
a cada instante
vigiar o comportamento de
cada um, apreciá-lo,
sancioná-lo, medir as
qualidades ou os méritos.
Procedimento, portanto, para
conhecer, dominar e
utilizar. A disciplina organiza
um espaço analítico.
A jornada de trabalho com seu
aspecto organizador físico apresenta os elementos que Foucault descreve como um
mecanismo em que se distribuem trabalhadores
num espaço onde se possa isolá-los e localizá-los; por outro lado usa-se a
distribuição dos corpos, a arrumação espacial do aparelho de produção e as
diversas formas de atividade
na distribuição dos
“postos” para inspecionar os
homens, constatar sua
presença e sua
ausência, e constituir
um registro geral
e permanente dos indivíduos (FOUCAULT, 1987).
Foucault também cita o controle
do horário como uma velha herança e instrumento
de controle da atividade: “O rigor do tempo industrial guardou durante muito
tempo uma postura religiosa; no século
XVII, o regulamento
das grandes manufaturas
precisava os exercícios que
deviam escandir o trabalho“ (FOUCAULT, 1987, p. 175).
Percebe-se que a jornada de
trabalho, que deveria engrandecer o ser humano, aprisiona sua subjetividade,
não deixando espaço para seu ser como
pessoa. Mas, por outro lado“procura-se
também garantir a qualidade do tempo empregado:
controle ininterrupto, pressão dos fiscais, anulação de tudo o que possa
perturbar e distrair; trata-se de constituir um tempo integralmente útil” (FOUCAULT, 1987, p. 176).
Neste mesmo sentido “o
tempo medido e
pago deve ser
também um tempo
sem impureza nem defeito, um tempo de boa qualidade, e
durante todo o seu transcurso o corpo
deve ficar aplicado a seu exercício. A exatidão e a aplicação são, com a
regularidade, as virtudes
fundamentais do tempo
disciplinar” (FOUCAULT,
1987, p. 177).
Na ótica Foucaultiana, “a
disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com o objeto que
manipula. Ela estabelece
cuidadosa engrenagem entre um e outro” (FOUCAULT, 1987, p.178).
Desta forma
(FOUCAULT, 1987, p.179):
o
princípio que estava subjacente ao horário em sua forma tradicional
era essencialmente negativo;
princípio da não-ociosidade; é proibido perder um tempo que é contado por
Deus e pago pelos homens; o horário devia
conjurar o perigo
de desperdiçar tempo
— erro moral e
desonestidade econômica. Já a
disciplina organiza uma
economia positiva; coloca
o princípio de uma
utilização teoricamente sempre
crescente do tempo:
mais exaustão que emprego;
importa extrair do
tempo sempre mais
instantes disponíveis e
de cada instante sempre mais
forças úteis. O que significa que se deve procurar intensificar o uso do
mínimo instante, como
se o tempo,
em seu próprio
fracionamento, fosse
inesgotável; ou como
se, pelo menos,
por uma organização
interna cada vez
mais detalhada, se pudesse
tender para um
ponto ideal em que
o máximo de rapidez
encontra o máximo de eficiência.
Ainda neste sentido, como o
patrão usa a jornada de trabalho para absorver o corpo e as forças do
trabalhador (FOUCAULT, 1987, p.183):
Como capitalizar o tempo dos indivíduos, acumulá-lo em
cada um deles, em seus corpos, em suas forças ou capacidades, e de uma maneira
que seja susceptível de utilização e de controle? Como organizar
durações rentáveis? As
disciplinas, que analisam
o espaço, que decompõem
e recompõem as
atividades, devem ser
também compreendidas como aparelhos para
adicionar e capitalizar
o tempo.
No capítulo “A composição das forças” Foucault analisa o poder da
disciplina sobre o corpo. Trata-se do mesmo poder que o detentor dos meios de
produção detém sobre o trabalhador. Foucault vê a disciplina como forma de
tornar útil cada indivíduo e rentável a formação e a manutenção do grupo, o que
nos parece bem plausível na organização capitalista moderna em que se busca
obter um máximo de eficiência. Assim, a disciplina se torna uma
estratégia para a composição das forças para obter um resultado eficiente (FOUCAULT,
1987, p.192):
Em resumo,
pode-se dizer que
a disciplina produz,
a partir dos corpos que controla,
quatro tipos de
individualidade, ou antes uma
individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo
jogo da repartição espacial), é orgânica (pela codificação das atividades), é
genética (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela composição das
forças). E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros;
prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das
forças, organiza “táticas”.
A análise de
Foucault é precisa e certeira. Ele vai além e dita as regras para o bom
adestramento. No sistema capitalista a jornada de trabalho funciona também como
locus de adestramento de corpos e mentes.
Para Foucault (1987,
p.228):
O poder disciplinar
é com efeito
um poder que,
em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”;
ou sem dúvida adestrar para retirar
e se apropriar
ainda mais e
melhor. Adestra” as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e
forças para uma multiplicidade de
elementos individuais —
pequenas células separadas, autonomias orgânicas,
identidades e continuidades
genéticas, segmentos combinatórios.
Outro
aspecto que chama a atenção na análise acerca das dificuldades herméticas pela
redução da jornada de trabalho diz respeito à perda do poder de vigilância que
a classe burguesa ainda hoje exerce sobre o proletariado. É durante a jornada de trabalho
(incluindo o homework) que a classe burguesa exerce seu poder
disciplinar através da vigilância hierárquica, baseada num jogo de olhar (olhar
físico ou mecânico, como nos trabalhos em rede). Esta vigilância produz poder e
coerção. Foucault cita o acampamento militar como o apogeu da vigilância
hierárquica
A
jornada de trabalho produz um controle que funciona como um microscópio do
comportamento; no espaço da jornada de trabalho pode-se descobrir toda vida do
trabalhador. Está-se doente, se tem problemas financeiros, se tem problemas
afetivos. Tudo através da observação, de registro e de treinamento.
Os
supervisores e fiscais tornam-se peças fundamentais no sistema e, portanto um
operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma
peça interna no aparelho de produção
e uma artimanha específica do poder disciplinar. Desta forma (FOUCAULT,
1987, p.202):
E se é
verdade que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o aparelho inteiro
que produz “poder”
e distribui os
indivíduos nesse campo permanente e
contínuo. O que
permite ao poder
disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois
está em toda
parte e sempre
alerta, pois em
princípio não deixa nenhuma
parte às escuras
e controla continuamente
os mesmos que
estão encarregados de controlar;
e absolutamente “discreto”,
pois funciona permanentemente e
em grande parte
em silêncio.
A jornada de trabalho é o espaço
pleno do Panóptico[4]
em que se induz no trabalhador num estado consciente e permanente de
visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder, sendo essencial
que ele se saiba vigiado.
A jornada de trabalho funciona
como um mecanismo de vigilância patronal e “Nossa sociedade não é de
espetáculos, mas de vigilância” (FOUCAULT, 1987, p.240).
Encerrando este percurso de
analogias, podemos citar a menção de Foucault acerca do poder disciplinar (FOUCAULT, 1987, p.244):
O
crescimento de uma economia capitalista fez apelo à modalidade específica do
poder disciplinar, cujas fórmulas gerais, cujos processos de submissão
das forças e
dos corpos, cuja
“anatomia política”, em
uma palavra, podem ser postos em
funcionamento através de regimes políticos, de aparelhos ou de instituições
muito diversas.
Por fim,
com o controle e dominação do corpo de do ser do trabalhador dentro da jornada
de trabalho percebe-se a transformação do tempo da vida em tempo de trabalho
(Foucault, 2001, p. 116).
É preciso que o tempo dos
homens seja oferecido ao aparelho de produção; que o aparelho de produção possa
utilizar o tempo de vida, o tempo de existência dos homens. É para isso e desta
forma que o controle se exerce. São necessárias duas coisas para que se forme a
sociedade industrial. Por um lado, é preciso que o tempo dos homens seja
colocado no mercado, oferecido aos que o querem comprar, e comprá-lo em troca de
um salário; e é preciso, por outro lado, que este tempo dos homens seja
transformado em tempo de trabalho. É por isso que em uma série de instituições
encontramos o problema e as técnicas da extração máxima do tempo.
6 Considerações finais
O
presente trabalho não teve a pretensão de esgotar os assuntos tratados. Nosso
objetivo foi buscar uma compreensão de um determinado ponto de vista acerca das
dificuldades da redução da jornada de trabalho dentro do enfoque da obra Vigiar e Punir de Michel Foucault, abordando os
conceitos de controle e disciplina.
Considera-se
que a tecnologia e o progresso que foram sendo disponibilizados para a
humanidade não serão, sozinho, capazes de propiciar uma redução da jornada de
trabalho.
O modo de produção capitalista, que se sustenta dentre outros, do doutrinamento
orgânico e involuntário da classe dominada surge como uma das explicações para
a necessidade de se ter o empregado tanto tempo dentro da organização e
servindo à ela.
A
redução da jornada de trabalho é uma estratégia social de suma importância pois
é uma via de melhoria de vida ao trabalhador, que passa a ter mais tempo para
dedicar-se a atividades que não sejam moldadas pela lógica capitalista, e quem
sabe, desenvolver um espírito crítico em relação ao mundo que lhe rodeia,
ensejando, dentro do seu círculo, e depois em comunidades maiores, mudanças de
vida, por uma sociedade mais humana. Estas reflexões são urgentes.
Luiz Chiozzotto
Sandra Oliveira Mayer Barros.
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[1] O regime
de acumulação flexível foi integrado nas relações de produção e trabalho
principalmente no Japão em que posteriormente foi teorizado cientificamente por
TaiichiOhno e ganhou o nome de Toyotismo.
[2] Esta
saturação seria amplamente explorada pelo paradigma Toyotista na esfera do
“estoque zero” – kanban e just in time.
[3] A
Sociedade do Lazer em substituição à Sociedade do Trabalho não ocorreu da forma
prevista. O que se verifica é que a aludida Sociedade do Lazer, na verdade
transmuta-se na Sociedade do Consumo.
[4] O panóptico de Bentham era um projeto
arquitetônico de instituições disciplinares que utilizavam o olhar como
instrumento de controle